Confraria do Bucho e Tripas @ Pego
Por certo sabe o que são o bucho e a tripa. E passarinha? Sim, também é parte do porco. Ninguém duvida que este animal é um ingrediente forte da gastronomia portuguesa. Na aldeia do Pego, Abrantes, nasceu a Confraria do Bucho e Tripas, resultante de uma conversa entre amigos que quer preservar a identidade pegacha e proteger pratos típicos da Aldeia das Casas Baixas. O mediotejo.net foi petiscar ao Pego e perceber a importância que o convívio tem para os pegachos.
Chegaram a ser mais de 30 as tabernas e casas de pasto onde o petisco era rei na Aldeia das Casas Baixas, mais conhecida por Pego. Apesar do decréscimo da oferta petisqueira, a romaria até ao Pego continua e a tradição do bucho e tripas, à quarta-feira, permanece sagrada, desde os tempos em que as leis permitiam que os porcos fossem à faca pelas mãos da população.
No Pego, a matança acontecia à terça e os bichos, depois de pendurados, eram desmanchados no dia seguinte. Com a modernidade, a tradição foi obrigada a curvar-se à Autoridade de Segurança Alimentar e Económica e o porco deixou de ser morto em casa. Contudo, a tradição de comer as vísceras, decorrente de tempos de provação, onde a necessidade aguçava o engenho também na gastronomia, mantém-se de pedra e cal, tal e qual a vontade pegacha.
Há ainda quem se lembre da matança acontecer à sexta-feira, por isso o bucho e as tripas também se cozinham ao sábado, sendo, no entanto, uma prática cada vez mais rara e apenas em casas particulares. Tal como rareiam, no Pego, os estabelecimentos onde se serve o famoso bucho e tripa. São três os locais possíveis que encontramos a abarrotar numa qualquer quarta-feira: O Bento, O Pechalha e O Cachucho.
Para comprovar a tradição, visitamos cada uma das tasquinhas pegachas que persistem na promoção da tradição, mas desengane-se quem espera chegar ao Pego e encontrar o nome de cada uma das tascas à porta do estabelecimento comercial. Apenas a Tasquinha do Cachucho é exceção. E segundo a verdade do proprietário, José Manuel Amaro, confrade da Confraria do Bucho e Tripas, o seu tasco “não é uma típica e antiga casa de petiscos” contrariamente ao Bento, a mais antiga casa de petiscos do Pego, onde as entranhas do porco são cozinhadas desde 1890.
Conceição Vinhais é a “Benta”, proprietária e cozinheira que agora, aos 75 anos, só abre a casa às quartas-feiras para servir o bucho e as tripas. Entrou no negócio em 1978 após casar com um pegacho, sendo ela vizinha da freguesia de Alvega. Na casa que encontrou, os sogros matavam e desmanchavam porcos, faziam enchidos para vender na taberna como petisco ou na mercearia.
E garante que, passados mais de 100 anos desde a abertura ao público, o bucho e a tripa são confeccionados da mesma forma. As entranhas cozinham “na água de cozer as morcelas. Uma ou duas acaba por rebentar durante a cozedura, o que é bom para fortificar o caldo com o sangue e a gordura da morcela, que tempera” com os tradicionais condimentos como os cominhos ou o cravinho.
Em observação do baixo casario, lá chegámos por estreitos e compridos corredores que terminam em pátios, característica que lembra as típicas casas árabes. Aí encontramos pequenas salas, com várias mesas compridas para receber os convivas, sejam eles pegachos ou forasteiros. Ao lado a cozinha e mais instalações que outrora foram tabernas, mercearias e outras atividades comerciais.
Não se acanhe que as gentes do Pego recebem bem. Faça um sinal a quem circula de travessa na mão, transpirando intensa azáfama, e peça uma mesa. Tempos houve que as filas de gente em espera atrofiavam as ruas estreitas que escondem as tascas, ainda assim a movimentação continua, quer de quem serve, como de quem espera pela quarta para ir ao petisco no Pego, principalmente em agosto com o regresso dos emigrantes, contam os pegachos.
Entre as iguarias o bucho e a tripa são reis, mas no fundo, a gula serve apenas de pretexto para conviver, conversar, confraternizar e comer bem. Além das entranhas do porco, comem-se enchidos – morcela, chouriço, moura e farinheira -, coração e passarinha que mais não é do que o pâncreas do animal. Os pegachos não desperdiçam e qualquer parte do porco é bem aproveitada.
Também não se deixe perturbar pelo cheiro intenso e característico das tripas. Faz parte! E dizem os pegachos que após uma primeira prova todos se convertem, mesmo à tripa “cagueira” a mais procurada e saborosa das três. As outras duas distinguem-se por serem ou finas ou grossas.
Tradicionalmente o petisco era acompanhado por pão de trigo, broa de milho e um bom vinho, os tempos modernos trouxeram inovações. Além da tradicional cozedura na água das morcelas, servido simples ou regado com sumo de limão, agora as vísceras vão à grelha sendo depois temperadas com alho, coentros, vinagre e azeite.
O grelhado “apareceu mais tarde porque muita gente não aprecia o cheiro intenso da tripa cozida e o grelhado abafa um pouco”, explica Jorge Vilhais. Os restantes petiscos como o chouriço assado, o entrecosto ou orelha de porco comem-se acompanhados por batatas fritas e salada. As tripas aproveitam-se também para fazer arroz, outro prato tradicional do Pego, tal como as couves com feijão ou as migas carvoeiras.
Às quartas, das 19h00 às 23h00 a “malta” vai ao petisco. Conceição não tem ideia do número de clientes que a sua casa recebe. “São muitos”. A filha, Ausenda Vilhais, ainda se recorda dos clientes que chegavam de Lisboa, no tempo que o avô era o gerente da tasca. Atualmente também fazem a viagem, embora em menor número.
Jorge, também filho de Conceição, mostra-nos uma fotografia autografada por Emanuel, um dos artistas tal como Vicente da Câmara, que já frequentaram O Bento. Os filhos de Conceição ajudam na noite do aperto, mas não contam seguir com o negócio. Razão principal da casa continuar a abrir à quarta-feira, Conceição resiste para que a tradição não acabe.
Natural de Coruche, Maria Joaquina Mascate é uma das clientes ocasionais de bucho e tripa. O colesterol não permite assiduidade apesar de ser uma “pegacha” de alma e coração. “Desde pequena que me lembro desta tradição. Antigamente era melhor porque os porcos eram mortos aqui. Toda a gente matava porcos, durante todo o ano. Era um ritual”, recorda.
Também Francisco Pratas, nascido e criado numa casa vizinha da Igreja do Pego, recorda desde sempre esta tradição. “Desde miúdos! Quando tínhamos alguns tostões vínhamos logo ao bucho e tripas”, conta ao mediotejo.net.
Quer Anabela Moleiro Santos como José Moleiro recordam a tasca do Ti’Pedro, entretanto encerrada. Eram muitas as tascas no Pego, “matavam-se os porcos à terça-feira e à quarta desmanchavam-se, mas a tradição do petisco nasceu em casa, para as pessoas conviverem umas com as outras. Algumas dessas tascas fecharam e a tradição perdeu-se um pouco. Existiam casas que só abriam à quarta-feira para o petisco, essa tradição também se perdeu. Em agosto eram casas cheias com a chegada dos emigrantes”, refere José Moleiro.
Do Porto encontrámos Rui Bouquet, um jovem da terra das tripas estreante nesta tradição do bucho e tripa pegacha. Desafiado por amigos do Pego, a visita calhou no dia da nossa reportagem. E porque gostos não se discutem, sobre a experiência diz ter gostado mas o sabor “não é a melhor coisa do mundo”, confessou, a rir.
Entre os convivas encontrámos também Francisco Lopes, um pegacho que trocou a sua terra pela capital. Questões profissionais complicam cada vez mais a assiduidade no petisco à quarta-feira. “Sempre que posso venho ao bucho, infelizmente cada vez menos”, afirma. Contudo, para o jovem de 27 anos, a tradição “faz todo o sentido! Os sítios não são todos iguais, têm tradições e costumes diferentes e se não se mantêm perde-se a identidade”, nota.
Joana Fábrica, de Abrantes, também costuma escolher o Pego para petiscar. Confessa-se uma rendida ao bucho e tripa. “Muito bom! Aprecio bastante. Além de ser uma forma de conviver e de estar com os amigos”, vinca.
Do terraço do Claudino à Confraria do Bucho e Tripas
Um portão de ferro antecede um longo corredor que desemboca num pátio no fundo de um quintal, onde ainda se veem os tanques de lavar as tripas assim que as ribeiras deixaram de correr água límpida e o rio Tejo começou a apresentar índices de poluição. Alguidares de barro vermelho vidrado atrás dos vasos de flores, argolas de ferro jazem enferrujadas no tecto do alpendre, onde os animais eram pendurados após a matança, enfiados que eram uns ganchos nos membros posteriores e com uma corda levantados do chão até terem os focinhos suspensos. A matança apresentava-se como um ato fundamental na economia da ruralidade pegacha e um costume também festivo tal como em muitas zonas do País.
Para Claudino e os seus antepassados não havia cá engordas com abóboras, tomates, bagaço de azeitona ou sobras de comida. “Nunca criámos porcos”, diz. Iam comprá-los crescidos, prontos para abate a vários criadores da região como Alvega ou Rossio ao Sul do Tejo. O negócio de venda de carnes foi herança paterna, vinda do avô de Claudino Gil, que hoje conta 83 anos. Há cerca de 11 “acabou tudo”. Refere-se ao talho, à salsicharia e à taberna igualmente referência do bucho e tripa.
“Matavam-se os porcos à sexta-feira, ajudava os meus pais nisso, os porcos eram desmanchados aqui e depois vendidos no talho ou retalhados para o fabrico dos enchidos” explica. Aliviadas as carcaças das vísceras, ficavam dependuradas a arrefecer até ao dia seguinte e as tripas vendidas ao quilo no talho para o petisco que se confecionava logo de seguida no quintal onde Claudino dispunha grelhas para que os convivas tratassem do seu próprio petisco ou então o próprio cozinhava numa sala onde ainda permanecem fogões e até chaminés de fumeiro, como documentos vivos de uma história ainda recente na memória de muitos.
“Depois de cozidas as tripas ficavam enroladas no tempero e sangue das morcelas. Hora e meia no tacho e adquiriam aquele gosto”, explica Claudino. Umas mesas dispostas no terraço, na taberna e cada um dos fregueses servia-se a si próprio “de vinho, gasosas, pão e no grelhador a carvão”. No início do ritual do petisco, as tripas quando grelhadas eram servidas em cima de folhas de papel pardo, só mais tarde evoluiu para a utilização de pratos e talheres.
Entretanto, chegou o tempo de fechar literalmente a loja, a idade avançava e sem herdeiros que ajudassem nas tarefas, a decisão tornou-se definitiva, permanecendo tudo intocável, desde o talho com as arcas frigoríficas e as bancadas, à fábrica de enchidos onde faziam chouriços, mouras, morcelas e farinheiras, onde hoje restam balanças e outros equipamentos moribundos.
“Tinha de ser, não é?”, interroga-nos sabendo melhor que nós a resposta. Além disso, “o negócio das carnes deixou de ser rentável no que diz respeito aos talhos. As grandes superfícies abalaram completamente o negócio e arrumaram com o pequeno comerciante. O supermercado vendia mais barato do que o preço que eu comprava”, garante Claudino.
Foi Manuel Gil, presidente da direção da Confraria do Bucho e Tripas, quem nos levou até ao quintal de Claudino traçando um pouco da tradição da Aldeia das Casas Baixas e das características próprias dos pegachos, que levaram à criação da Confraria.
A aldeia típica do Pego fica implantada num pequeno planalto sobre o rio Tejo. Situada no concelho de Abrantes, pertence ao Ribatejo, mas no ponto onde este se encontra com a Beira-Baixa e com o Alentejo. De tradições rurais, embora com um solo não muito fértil, o pegacho sem nunca descurar do seu bairrismo, migrou para trabalhos sazonais. Carvoaria, apanha da azeitona ou vindima. O que marcou significativamente a sua identidade. É este património imaterial e material que a Confraria pretende preservar, explica a confreira Daniela Canha, vogal da direção.
Do património gastronómico destaca as migas carvoeiras. No passado “as pessoas iam para o Alentejo trabalhar no corte de sobreiros, para as carvoarias, trabalhar nos fornos de carvão e havia uma cozinheira para 30 ou 40 trabalhadores. Ao almoço, cada um deixava uma panela de barro com grão ou feijão ou o que fosse para ela preparar. O jantar era sempre migas”, conta Manuel Gil.
A Confraria do Bucho e Tripas é uma realidade desde finais de 2018. Possui estatutos, insígnias, traje aprovado e logótipo, conta com apoio do programa Finabrantes e da Junta de Freguesia do Pego enquanto coletividade e conta apresentar a seu primeiro evento em novembro deste ano 2019.
“O Festival Reviver o Passado”, adianta Daniela. Cumprindo o cerimonial a que uma confraria obriga, falta apenas a cerimónia de entronização dos confrades.
E em consonância com a secular tradição pegacha da matança do porco e da convivialidade gastronómica em torno dos petiscos, a Confraria visa então “promover o estudo, preservação e divulgação do património gastronómico local, bem como a sua ligação com o artesanato, etnografia e folclore, literatura, arte e ciência”, diz, por seu lado, Manuel Gil.
Primeiramente “até surgiu a ideia da Confraria de Palha de Abrantes, mas depois foi a Confraria do Bucho e Tripas que avançou no sentido de proteger e preservar a identidade pegacha”, referiu o vice-presidente Manuel Luiz Correia.
Um dos objetivos passa por recrear a matança do porco com os costumes da região ao pormenor, ou melhor, “tudo o que envolve desde a criação do porco até à matança, desmanchar o porco ou lavar as tripas na ribeira. Mas o bucho e tripa é só a ponta do ‘iceberg’ da toda a tradição pegacha porque é imensa. Temos os palmitos [flores em papel, mais pequenos para os defuntos e maiores para decorar as casas], os registos [santinhos]que se identifica muito com a cultura mexicana e muito mais”, refere Daniela.
Quanto ao património arquitetónico, Manuel Gil aponta “as barras das casas baixas, as chaminés diferentes das restantes aldeias do concelho e a tipologia com uma casa de fora. Essa casa com uma porta voltada para o exterior que servia unicamente para duas ocasiões: para casamentos e velórios. Possui um traçado já documentado” afirma vincando a “maior proximidade ao Alentejo apesar do Pego ser no Ribatejo”.
Salientando a singularidade e irreverência do povo do Pego, Manuel Gil lembra que “a primeira vez que um homem e uma mulher, um par misto, dançaram o Fandango, eram dois pegachos” na Feira do Ribatejo em Santarém.
O traje da Confraria do Bucho e Tripas, entretanto aprovado, “é inspirado no traje do Rancho Folclórico da Casa do Povo do Pego”, indica Daniela, não esquecendo de referir os alamares em forma de cavalo.
Entre os muitos confrades e confreiras, integram os corpos sociais da Confraria na direção ainda como tesoureiro Paulo Marcos e na tarefa de secretário Maria Helena Marques, como suplentes Patrícia Carlos e André Serrano. Constituem a assembleia geral da Confraria António Moedas, como presidente, Ana Maria Bráz, como vice-presidente, e Manuel Coxinho, como secretário. Carla Moedas é a presidente do conselho fiscal, Joaquim Rosa e Carlos Falcão os vogais.
informação disponível em: http://www.mediotejo.net/pego-tradicao-do-bucho-e-tripas-resulta-em-confraria-para-preservar-identidade-pegacha/